Uma das obras-primas do cinema mundial e o
marco do cinema neo-realista italiano, Roma, città
aperta (1945), do premiado cineasta Roberto Rossellini e roteiro com colaboração
de Fellini, um dos gênios do cinema, pode ser considerada uma obra de caráter
documental, de um cinema que leva a arte a expressão real, crua, de uma Roma
ainda com feridas não cicatrizadas, literalmente “abertas”.
Uma das mais belas e trágicas cenas do cinema: Pina, interpretada por Anna Magnani, é morta. |
O filme é sensibilidade crua.
Rossellini faz brotar sentimentos, da magnitude da guerra e de seus personagens
reais. Não há artifícios, nem grandes
estrelas, a película é, literalmente, a arte encontrando a realidade ou então,
a realidade encontrando a capacidade artística da sétima arte. Arte
transplantada de uma experiência real.
Filmado dois meses após a liberação da
Itália, em meio as ruínas e a precariedade material, Rossellini viu-se em meio
a muitas dificuldades financeiras, o que fez com que as filmagens se
arrastassem por meses. Os atores não-profissionais, com exceção de Anna Magnani e Aldo Fabrizi,
dão um tom muito mais realista ao filme. Seus personagens são marcantes, embora
não conheçamos sua história, ou seja, seu início e muito menos seu fim. Talvez
seja essa característica, a de não conseguirmos ver um protagonista,
que faz da obra um retrato fidedigno de uma sociedade sem esperança, que muitas
vezes cai no desespero e pessimismo, assim como o retrato do sentimento
aterrorizante das mazelas no nazi-fascismo. Eles, os personagens, ligam-se por
histórias paralelas que, no fim, representam estratos da sociedade italiana da
época.
Marina: alienação |
Seus personagens parecem reais, seus
sentimentos se complementam numa diversificação de ações que resultam em várias
perspectivas da população inserida na guerra. Há a resistência, unindo pessoas
aparentemente muito diferentes, como o padre e o comunista. Há a mãe solteira,
Pina, que é morta, dias antes de seu casamento com Francesco, um dos
resistentes ao nazi-fascismo, numa das cenas mais marcantes do cinema. A
ingenuidade na futilidade exemplificada em Marina, interpretada por Maria Michi, que parece alienada em meio aos terríveis acontecimentos a sua volta e
que apenas toma conta de seus atos quando parece ser tarde demais. Há a frieza
do oficial nazista e sua secretária assistente, personagens com os quais Rossellini
quer demonstrar a irracionalidade do nazi-fascismo, pois ao mesmo tempo que
torturam, parecem se aterrorizar com a maldição proferida pelo padre Don
Pietro, interpretado por Aldo Fabrizi. Parecem reconhecer o despautério de seu
regime e temer por suas ações em um simples discurso divino, onde não se faz
uso da razão. Portanto, Rossellini parece exemplificar o alicerce irracional do
nazismo.
A execução do padre Pietro |
O caráter participativo da Igreja Católica
na questões de resistência ao autoritarismo parece ser recorrente nos filmes de
Rossellini. Na famosa trilogia da guerra do diretor (além de Roma, cidade
aberta, há Paisà e Alemanha, ano zero) encontramos a tentativa de participação
na resistência e superioridade moral da Igreja em Paisà, quando franciscanos
abrigam um grupo de capelães militares norte-americanos. Mesmo quando sabemos que grande parte da Igreja
era aliada ao fascismo, Rossellini procura evidenciar a resistência daqueles
que contrariaram a ordem vigente.
No momento em que o cinema tornava-se cada
vez mais comercial, época de ouro dos filmes norte-americanos, Rossellini
conseguiu produzir uma obra sem nenhum investimento. Roma, Cidade Aberta é
atemporal, é de uma realidade que não possui final, é frustrante, como os
muitos momentos da vida e, por isso mesmo, é bela. Não possui heróis conhecidos
e sim grandes heróis encontrados no povo, nos desconhecidos pela história. Na
cena final, talvez uma das mais emocionantes, há Roma ao fundo enquanto crianças
caminham após presenciarem a execução do padre Pietro. Para qual futuro
caminham? Perguntamo-nos.